Ferro e Fogo
O projeto sobrenatural de Deus para nós
Muitas vezes, as várias dimensões da nossa vida parecem ser realidades isoladas. Este curso pretende apresentar uma síntese existencial da vida cristã, a fim de alcançarmos o projeto de Deus para nós.
Iniciamos agora esse curso em comemoração aos 19 anos do site padrepauloricardo.org. Um curso que não tem um nome, mas cuja finalidade pode ser resumida não num título ou num tema, mas na seguinte frase que transmite o meu firme desejo: quero levá-los para o Céu.
Mas, se quero levá-los para o Céu, é preciso um roteiro. E o roteiro do curso é entender tudo o que temos feito no site ao longo dessas quase duas décadas, e o que a Igreja tem feito ao longo desses quase dois milênios. É, portanto, uma tentativa de síntese.
Vários teólogos, mais importantes e mais competentes, tentaram fazer uma síntese do cristianismo: Santo Tomás de Aquino, com sua Suma Teológica; Karl Rahner, teólogo liberal que foi perito no Vaticano II, com seu Grundkurs des Glaubens, “Curso Fundamental da Fé” (obra que, na minha opinião, vale mais pelo título que pelo conteúdo); e mesmo o então Pe. Joseph Ratzinger, em Einführung in das Christentum, “Introdução ao Cristianismo” — livro que derivou de palestras muito concorridas, ministradas na Universidade de Tübingen, Alemanha, em 1967, ano do meu nascimento.
Diante de tantos esforços, quem sou eu para também me arriscar a fazer uma síntese?
Digo que não tento fazê-la pela importância que venha a ter, mas por um senso de missão. Creio que todos nós, em certo momento, precisamos nos empenhar em amarrar as pontas daquilo que é a nossa vida cristã. Porque, muitas vezes, deixamos de ver conexão entre os atos de caridade e a vida de estudos; entre os dogmas e a nossa vida espiritual; entre a mística e os afazeres domésticos, as atividades profissionais, o lazer, a alimentação e os cuidados com a saúde. Parece então que vivemos várias vidas. É como se fôssemos máquinas com diversas funcionalidades: o modo católico, o modo academia, o modo festa, o modo de estudo, e assim por diante. É uma espécie de fragmentação existencial que devemos consertar exatamente por meio dessa busca de síntese.
Há quem entenda a palavra síntese como sinônimo de resumo. Não é isso. Tenho quase 58 anos. Embora não me sinta como tal, sou praticamente um sexagenário. E, do alto dessa idade, noto que agora sou capaz de certas coisas de que não era na juventude ou no início da vida adulta. Uma delas é esse trabalho de síntese, que consiste em olhar para as experiências acumuladas de um ponto de vista mais abrangente, mais universal — como um alpinista que, no sopé da montanha, tem uma visão bastante limitada, mas, atingindo o cume, é capaz de captar tudo o que há no vale, numa bela vista panorâmica.
Vamos ao longo da vida enriquecendo nossa experiência de mundo, estudando, contemplando verdades, até que, de repente, tudo parece se juntar e ganhar uma coerência antes sequer imaginada. Em linguagem técnica, as verdades e experiências coalescem. E quando um ser humano conquista essa capacidade, essa visão de conjunto, é sinal de que atingiu um nível superior. E isso, senão por uma graça especialíssima de Deus, é quase impossível para os mais jovens, que não tiveram ainda tempo de acumular experiências — boas e más — e conhecimentos suficientes.
Por isso julgamos ser tempo de fazer esta síntese. Síntese não só do nosso apostolado, mas também das nossas vidas, de modo que todos tenham claro: o nosso projeto não é outro senão o projeto de Deus para o gênero humano.
E qual seria o projeto de Deus para a humanidade?
São Pedro o resume perfeitamente ao dizer na sua carta que somos divinae consortes naturae, “participantes da natureza divina”. Isso é o cristianismo. Essa é a maravilha de ser católico. Somos chamados a participar da natureza de Deus. Diz o Salmo: “Vós sois deuses” (Jo 10, 34; Sl 81, 6). Claro, não somos deuses no sentido estrito, mas, de alguma forma, somos chamados, no Céu, a participar da vida de Deus.
Para entender como isso funciona, gosto de usar como exemplo a felicidade. Quem tem cachorro, sabe que a felicidade do animal está na chegada do dono, no carinho que recebe, no abrigo que o acolhe, na comida e na bebida que o sustentam. Eis toda a realização canina.
No entanto, nós, que somos capazes de reconhecer a felicidade do cachorrinho, não podemos nos satisfazer com ela. Se tivermos cuidado, afeto, casa, comida, roupa lavada, dinheiro, bens, posses, poder, nisso tudo não estará a nossa felicidade. E não falo isso como dogma religioso. Falo de uma experiência universal que qualquer pessoa minimamente honesta admitirá como verdadeira. Todas essas coisas fazem parte da felicidade, mas — sabemos — não são a felicidade em si mesma.
Isso porque a felicidade humana é diferente da felicidade animal. Quando nasceu meu primeiro sobrinho — hoje com 30 anos —, tive, pela primeira vez, a experiência de uma criança em casa. Uma alegria. Certa vez, quando o menino já balbuciava as primeiras palavras, enquanto brincava de carrinho no chão, ele virou-se para mim e disse: “Tio”. Foi a primeira vez que ele chamou-me tio. Uma palavra tão singela: tio! Senti-me como se tivesse nascido de novo. Para aquele pequenino, eu já não era mais um rosto anônimo dentre tantos outros que lhe faziam caretas e gluglus. Eu era alguém para o menino. Ele me reconhecia como seu tio.
Essa tremenda felicidade do reconhecimento, da gratidão, é completamente alheia aos animais. Quando cheguei para a aula, quantos alunos não barraram meu passo para dizer, sem chance de espera, que me eram muito gratos, que o apostolado no site havia significado muito em suas vidas. E vinham falar com lágrimas nos olhos. Lágrimas que exprimiam experiências que não seriam capazes de dizer. Porque é mesmo difícil dizer o que foi conhecer o caminho de Cristo e da Palavra de Deus — tenha o site apenas lhes aberto a porta ou conduzido os que já estavam dentro pelos salões e corredores deste imenso e deslumbrante palácio que é a Santa Igreja.
Esse sentimento de gratidão só nasce de um passo intelectual superior: o da memória. E não da mera memória, pois desta os animais em certa medida ainda dispõem. A gratidão brota de uma memória que dá significado às coisas. É como quem pensasse: “Ora, lembro-me de que um dia tive uma dúvida quanto à religião e que a resposta encontrada no site foi decisiva para que eu me convertesse”. Nisso, as coisas como que se encaixam. E é nesse encaixe que podemos nos ver gratos pelos nossos benfeitores.
É uma felicidade que só os seres humanos podem experimentar. Se um dia chegarmos em casa e nos depararmos com o nosso cãozinho, banhado em lágrimas, dizendo em linguagem humana que nos agradece muito pelo abrigo, pelos carinhos e pela comida, estejamos certos: estamos diante de um fenômeno “sobrenatural”; um fenômeno que ultrapassa infinitamente a natureza canina.
Ultrapassa, além do mais, porque a gratidão, filha da memória, também surge de um conceito de justiça. Ora, não há nada de anormal em recebermos aquilo que é de nosso direito. Mas, quando recebemos o que não nos era devido e sequer esperávamos, ficamos extremamente agradecidos. O senso de justiça nos diz que ganhamos o que não tínhamos direito de ganhar — e que, portanto, ninguém tinha o dever de nos dar; e se nos deu, foi por um gesto de carinho, de amizade etc. Nenhum animal — repito — é capaz de perceber essas relações e fazer esses juízos.
Ora, disse que quero levá-los para o Céu, e que estar no Céu é participar da natureza divina, é experimentar uma felicidade que não é nossa, mas a felicidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. No entanto, para que isso seja possível, é preciso mudar a nossa natureza — assim como precisaria mudar a natureza do cachorro para que ele demonstrasse senso de justiça e gratidão. Em uma palavra, é necessário que haja, em nós, uma elevação do natural para o sobrenatural.
Sobrenatural quer dizer o que está acima da natureza criada. E a natureza criada é mineral, vegetal, animal, humana e angélica. Ou seja, nem mesmo a natureza dos anjos é sobrenatural no sentido a que me refiro. Com sobrenatural quero aqui dizer divino.
Voltemos ao que diz São Pedro:
O seu divino poder nos presenteou com tudo o que contribui para a vida e para a piedade, mediante o conhecimento daquele que nos chamou para a sua glória e força poderosa. Por elas foram-nos concedidas as maiores e mais valiosas promessas, a fim de que vos tornásseis participantes da natureza divina, fugindo da corrupção que pela cobiça reina no mundo. Por isso mesmo, dedicai todo o esforço em juntar à vossa fé a fortaleza, à fortaleza o conhecimento, ao conhecimento o domínio próprio, ao domínio próprio a perseverança, à perseverança a piedade, à piedade a fraternidade, à fraternidade o amor. Se essas qualidades existirem e crescerem em vós, não vos deixarão vazios e estareis no conhecimento de Nosso Senhor Jesus Cristo (2Pd 1, 3-8).
São Pedro fez uma síntese. Ele diz que há a natureza divina e descreve o caminho a ser percorrido até que a alcancemos. É, dentro das nossas capacidades, o que queremos fazer neste curso. Deus quer transformar a nossa natureza. Mas: como Ele faz isso? Como podemos colaborar para que isso aconteça? Ao mesmo tempo, quero que todos entendam como as várias (aparentes) partes da religião se encaixam em nossa vida prática: por que, no dogma, Jesus precisa ser Deus para que sejamos salvos? Onde entram os sacramentos? Onde entra a vida de oração? Como a graça age em nós? O que acontece com a nossa inteligência e com a nossa vontade?
É uma meta bastante pretensiosa. Se vamos chegar ao final, conforme o planejado, não é possível dizer. O certo é que vamos avançando, num processo educacional livre, respeitando o tempo de todos, recuando quando for necessário, para que cheguemos o mais perto possível da desejada síntese e de uma compreensão mais clara do que é, para nós, o projeto de Deus.
O curso é: quero levá-los para o Céu. Mas também: fomos feitos e designados por Deus para participar da sua natureza divina. Ou: há uma felicidade muito maior do que podemos imaginar.
No final das contas, quero que todos saiam deslumbrados com o fantástico mundo que é a Igreja e repitam, boquiabertos, aquela frase que já vai se tornando um bordão, mas que guarda um significado verdadeiramente rico e profundo: É lindo ser católico!
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