sábado, 13 de setembro de 2025

Nossa uniao com a natureza divina

 

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Texto da aula
Ferro e Fogo

Nossa união com a natureza divina

A imagem do ferro submetido ao fogo, para ser moldado, é uma metáfora riquíssima da relação entre a natureza humana e a divina, pela qual a humanidade, frágil e imperfeita, é transformada por Deus.

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Dizíamos que, nesta série de aulas, nossa pretensão é fazer uma verdadeira síntese da nossa vida cristã — um enfeixamento da moral, da dogmática, da ascética, da teologia da graça, da história da Igreja, da vida dos santos e do Magistério com a nossa vida cotidiana.

Já falamos sobre a nossa vocação para participarmos da natureza divina. Porque era difícil esclarecer o conceito de “natureza”, falamos então da felicidade: há a felicidade do cãozinho, a nossa felicidade e a felicidade própria do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Se um cachorro quisesse participar da nossa felicidade, ele teria de passar por uma mudança substancial; o bicho teria de ser elevado da natureza canina para a natureza humana. Conosco aconteceria algo análogo: a fim de participarmos da natureza divina, precisaríamos ser elevados. 

Digamos desde já que esta é a grande miséria do protestantismo: eles não creem nessa transformação [1]. Para os protestantes, Deus salva o homem pecador por meio de um decreto. O Céu seria como um homem que, almejando ter um filho, adota um cãozinho do canil e o coloca em um berço de criança, com toda a dignidade de um ser humano recém-nascido. Contudo, a natureza do animal não foi transformada — a criatura envolta em fraldas continua a ser um cachorro. Já para o católico, o Paraíso é transformar o animal a fim de que ele realmente comece a se comportar como filho, isto é, para que ele tenha um comportamento sobrenatural. 

Foi para isso que, sem deixar de ser Deus, a segunda pessoa da Santíssima Trindade assumiu a nossa natureza humana. Eis o porquê de não haver salvação sem o Verbo encarnado. Ou seja: se Deus não viesse, por meio de Jesus Cristo, participar da nossa vida, não poderíamos participar da sua — portanto, não haveria salvação, não haveria Céu.  

Para nos ajudar a entender essa participação do humano no divino, os santos, há milênios, usam o exemplo do ferro e do fogo. 

A natureza do ferro é ser duro, frio, opaco; o ferro é fosco, não brilha. No ser do ferro há qualidades que determinam o modo como ele se comporta. É próprio do ferro, por exemplo, cair quando lançado para os ares, e não alçar voo. Se conseguimos fazer com que o ferro voe, quem sabe, como componente de um avião, é porque houve ali uma modificação. Do mesmo modo, não é próprio da natureza do cãozinho receber, com lágrimas nos olhos, o dono que chega em casa; o animal, por mais “educado” que seja, não tem em seu ser essa natureza. Ele teria de se elevar muito acima disso. E quanto ao ser humano, não é próprio da nossa natureza suportar ofensas terríveis dos algozes e, não obstante, ainda dizer: “Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). A nossa reação diante de alguém que age assim só pode ser a do bom ladrão, que reconheceu ali um agir verdadeiramente divino. Suplicante, o ladrão arrependido pediu para ser lembrado por Jesus porque ele sabia: um homem comum jamais se comportaria daquela forma. 

Ora, a reação do ferro em contato com o fogo é análogo ao que se dá na pessoa divina de Cristo: uma humanidade abrasada pela divindade; um ferro que se comporta como fogo; um homem com agir divino. Jesus realizou os seus milagres, pregou o Evangelho e nos deixou a sua Igreja precisamente para que pudéssemos entender que Ele conhece a Deus como Deus conhece a si mesmo. Cristo ama a Deus e participa de sua felicidade como Ele se ama e é feliz. Mas Jesus não quer que simplesmente saibamos disso; quer que também participemos dessa realidade. Ele quer incendiar o nosso ferro frio e fazer-nos verdadeiramente divinos. 

Foi o que aconteceu em Pentecostes: o fogo veio até a Igreja. Do Céu, Nosso Senhor enviou o Espírito Santo a fim de que recebêssemos, por seu intermédio, a “participação na natureza divina”. 

A palavra grega que aparece aqui, ainda na Segunda Epístola de São Pedro, para referir-se a isto que chamamos de “natureza”, é φύσις (physis); natura, em latim. 

Nunca é demais esclarecer que estamos empregando o termo “natureza” em seu sentido filosófico: trata-se do que faz uma coisa ser o que ela é, e comportar-se em conformidade com isso. Não estamos usando a palavra em seu sentido mais comum, relativo ao meio ambiente, à fauna e à flora. 

Quando falamos de “natureza”, então, ninguém pense em um mico-leão dourado saltando entre os galhos de uma árvore na Mata Atlântica. Porque é nisto que pensam, por exemplo, os cientistas, psicólogos e ativistas LGBT, quando ouvem a Igreja declarar que “os atos homossexuais são contra a natureza”. Tão logo lhes chegam aos ouvidos esta frase, querem eles rebater com argumentos próprios da biologia, falando do comportamento homossexual dos golfinhos, dos primatas do Congo etc. Na “natureza”, conforme eles dizem, há atos homossexuais. Contudo, não é à natureza biológica, zoológica ou fisiológica que a Igreja se refere aqui. Essa não é a “natureza” da linguagem filosófica.  

Conforme a filosofia, quando observamos a dinâmica natural dos órgãos reprodutores masculino e feminino, constatamos que ambos se encaixam perfeitamente, por assim dizer. Isso porque esses órgãos foram feitos precisamente para tal união. A natureza dos órgãos reprodutores é produzir um único resultado: uma criança. O que implica dizer que a natureza, a finalidade dos órgãos sexuais no ser humano, não é produzir prazer — embora também haja prazer. 

Observemos outro exemplo: a comida. Podemos contemplar a beleza da comida, pô-la na boca, saborear o seu gosto, apreciar-lhe o aroma e a textura e, por fim, a sensação de saciedade. Tudo isso causa prazer, mas a finalidade da comida é tão somente nutrir. Se, num ato de desatino, alguém inventasse um sistema que regurgita a comida ingerida só para que se pudesse sentir prazer novamente ao comer, alguém diria com razão que isso é contra a natureza. Ora, isso porque os prazeres inerentes à comida existem tão somente para incentivar o animal a se nutrir — caso contrário, ele padeceria de fome. Se um animal passasse a comer por puro prazer mas, insatisfeito, usasse esse sistema de regurgitar o alimento — sem se nutrir —, certamente morreria. A finalidade do nosso sistema digestivo, com toda a sua complexidade, é a nutrição, não o prazer. 

Os atos homossexuais são análogos a isso. Visam o prazer, mas desassociado da reprodução, que é a finalidade mesma dos órgãos sexuais. E como tais atos são uma ampla gama de recreações que o homem moderno teima em chamar de sexo, mas que estão bem longe de sua “natureza”, tal como Deus a pensou.

Isso implica a triste realidade atual de que a humanidade está acabando. Por exemplo: nós podemos dizer que a Europa é um fenômeno histórico em vias de extinção. As pessoas que representam a matriz genético-europeia não estão se reproduzindo a uma taxa suficiente de reposição. Portanto, a certeza é matemática: a Europa acabou. No Velho Mundo, quem se reproduz a taxas astronômicas são os imigrantes, mormente os árabes. Infelizmente, não há na história exemplo de civilização que tenha se recuperado depois de atingir níveis baixíssimos de reprodução, como a Europa. Certa feita, ouvi de um padre italiano amigo, voltando de viagem à sua terra natal, que a Itália havia acabado. Ele explicou com um exemplo da própria família: tinha quatro sobrinhos, todos maiores de 40 anos, ainda vivendo com os pais e sem pretensão alguma de casar-se. 

Verdadeiramente, é um desafio reverter este processo cultural. Pois uma civilização inteira assentiu à ideia errada de que a finalidade do sexo é não a reprodução, mas o puro prazer.

Todo este esforço foi para que entendamos o significado da palavra “natureza”: o ser de uma coisa que desemboca num agir próprio daquela natureza. É próprio da natureza dos órgãos sexuais a reprodução; dos órgãos digestivos, a nutrição; da natureza humana, o ser humano. 

Agora voltemos: a natureza divina não é própria da natureza humana. O que significa que, por natureza, nós não somos filhos de Deus. Para tanto, precisaríamos ser “Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; gerado, não criado, consubstancial ao Pai”. Neste sentido próprio, só Nosso Senhor Jesus Cristo é Filho de Deus.

Acontece que Jesus não é somente Filho de Deus; Ele também “se encarnou pelo poder do Espírito Santo no seio da Virgem Maria e se fez homem”. Ou seja: depois do fiat de Maria, o Filho de Deus passou a ser algo que não era antes; tornou-se também “filho do homem”. Em diversas passagens do Evangelho, Nosso Senhor se denomina assim: como בַּר אֱנָשׁ (bar aneesh, em aramaico), isto é, filho da fragilidade, da natureza humana — filho de Maria, como confessamos.

Em Cristo, portanto, há duas naturezas: ferro humano e fogo divino. Nele vemos, como diz a Carta aos Hebreus, Deus feito κατὰ πάντα καθ’ ὁμοιότητα χωρὶς ἁμαρτίας (kata panta kath’ homoiotēta chōris hamartias): “em tudo semelhante a nós, exceto no pecado” (4, 15). Por isso Ele viveu trinta anos, de forma plenamente humana, para que não houvesse dúvidas quanto à sua natureza de homem. De tal modo que, quando Jesus começou a pregar, as pessoas de Nazaré ficaram abismadas com a sua inteligência, porque o tinham na conta de simples carpinteiro, desprovido de outros talentos. Daí a sua resistência em dar o passo da fé e crer nele como Filho de Deus. 

Mas Ele também se comportou de modo realmente divino, como já dissemos. Perdoar os seus algozes, como ele fez, não é próprio do ser humano. Também o ferro, como sabemos, quando suficientemente aquecido, começa a se comportar como fogo — soltando até labaredas. Com seu coração e alma humanos, Nosso Senhor revela um homem comportando-se divinamente. 

A grande maravilha é que Cristo não reservou isto para si, mas quis partilhá-lo conosco. Foi por isso que São Paulo disse: “Vivo, mas não eu; Cristo vive em mim” (Gl 2, 20). O Apóstolo só foi capaz de dizê-lo porque o Espírito Santo uniu a sua alma à de Cristo — e assim, o que era ferro, passou a se comportar como fogo. 

A Sagrada Escritura nos diz que Paulo foi testemunha do martírio de Santo Estêvão: “E apedrejaram Estevão, que orava e dizia: ‘Senhor Jesus, recebe o meu espírito’. Posto de joelhos, exclamou em alta voz: ‘Senhor, não lhes leve em conta este pecado’. A estas palavras expirou” (At 7, 59-60).

Ora, não temos aqui, na prática, a transcrição da morte de Cristo? São Lucas, que também é o autor dos Atos dos Apóstolos, narra: “Enquanto Jesus era pregado na cruz, Ele ia dizendo [ia repetindo]: ‘Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). Os cristãos que testemunharam o martírio de Santo Estevão não poderiam dizer que estavam diante de Nosso Senhor? As últimas palavras de Cristo no alto da Cruz foram: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23, 46); e as de Estêvão foram: “Senhor Jesus, recebe o meu espírito”. Não é notável a semelhança?

Quando Estêvão foi martirizado, no entanto, Paulo era ainda perseguidor dos cristãos; Estêvão fora apedrejado com sua chancela. Foi no caminho de Damasco que tudo mudou, e Jesus lhe apareceu dizendo: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” (At 9, 3-4). Ou seja, no ato de perseguir Estêvão, era o próprio Jesus que ele perseguia. 

Eis o mistério da Igreja! Unidos a Ele formamos um só corpo. E essa metáfora vai para além da mera poesia: é um esforço por descrever como é que participamos da natureza divina! De modo que, quando crescemos na santidade, ficamos maravilhados com a nossa nova forma de vida: temos uma paciência, uma caridade, uma inteligência, que antes não possuíamos. Assalta-nos uma  surpresa semelhante à dos nazarenos, confundidos por ver atos divinos em simples homens — qual labaredas de fogo a brotar do ferro frio de nossos corações. Eis o projeto de santidade que Deus tem para nós.

Nota

1. Estamos apresentando a teologia protestante de forma prosaica, grosso modo. É claro que os seus expositores não a elaboram desta maneira. Seja como for, eles não creem na santidade. Na visão luterana, presbiteriana, batista etc., o homem não pode se comportar divinamente, com um amor sobre-humano.

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