Adão e Eva e a escravidão do pecado
No início da História da Salvação, está a queda de Adão e Eva, que preferiram seguir as mentiras de Satanás a crer no que Deus lhes revelou. Assim, a humanidade foi submetida aos grilhões do pecado.
Conforme temos dito, o Criador quer nos levar a experimentar uma felicidade sobrenatural, como participantes da natureza divina — como o ferro que é colocado em contato com o fogo. E o modelo máximo dessa relação, desse casamento do humano com o divino, é Jesus Cristo, em quem estão perfeitamente unidas estas duas naturezas, sem mistura nem confusão.
Mas esse projeto do Criador foi danificado pelo próprio homem. De fato, quando criou Adão e Eva, o Senhor infundiu neles a sua graça. Não se tratava de algo próprio da natureza humana, como são, por exemplo, os cabelos da nossa cabeça ou os membros do nosso corpo. Pernas e braços, “é digno e justo” que o homem os possua. Se Deus fizesse crescer uma perna nova no corpo de um perneta, é claro que isso seria um milagre; mas não seria uma graça no sentido mais próprio do termo, pois a perna é um elemento constitutivo da natureza humana, um bem devido a nós pelo simples fato de sermos homens. A graça de que falamos, no entanto, é um bem indevido a nós, algo verdadeiramente sobrenatural, dado “de graça”, não por justiça.
Adão e Eva, dizíamos, receberam de Deus essa graça de participar da natureza divina. Era esse o projeto original dele para a humanidade. Não era a participação plena, digna dos grandes santos, mas já havia fogo naquele ferro, digamos assim.
Nossos pais, no entanto, apagaram aquela centelha de santidade. É o que nos ensina o Gênesis ao falar de sua expulsão do paraíso: uma linguagem simbólica para exprimir a desgraça em que eles caíram, e também nós, por corolário. É como se eles fossem sumamente ricos, trilionários, e dilapidassem, de uma só vez, numa só aposta, todo o patrimônio, deixando-nos também a nós, seus legítimos herdeiros, na extrema pobreza, na miséria. Dizendo de outro modo: por iniciativa própria, Adão e Eva se colocaram sob o domínio de Satanás — e debaixo dessa mesma cadeia estão todos aqueles que não receberam o Batismo.
Menciono Satanás porque — é importante recordar — os anjos maus existem! A desgraça não tocou apenas a natureza humana.
No Credo de Niceia, por exemplo (cujo aniversário de 1700 anos estamos a celebrar), nós confessamos: Credo in unum Deum, Patrem omnipotentem, factorem caeli et terrae, visibilium omnium et invisibilium — “Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”. Estes céus e terra aqui aludem justamente ao que é visível e ao que é invisível: Deus criou não só o mundo material, mas também os anjos [1]; os quais eram bons, mas alguns deles se rebelaram contra Deus. Também neles o Criador infundira de graça a sua graça, um bem que era indevido também à sua natureza angélica; para que participassem da felicidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo — vendo a Deus como Ele mesmo se vê, e amando-o como Ele mesmo se ama —, também em sua natureza de criaturas precisava acontecer uma modificação.
Porém, como sabemos, alguns anjos, capitaneados por Satanás, jamais viram e jamais verão a Deus face a face, porque rejeitaram o dom da graça. A Escritura fala de “um terço” deles. A partir de sua revolta, então, movidos por inveja para com o ser humano, esses demônios têm trabalhado com afinco para nos impedir de entrar no Paraíso.
Tudo começou pela tentação de nossos primeiros pais, no Éden. Por isso dissemos que, ao cederem, Adão e Eva perderam a graça de Deus e tornaram-se escravos de Satanás. Daí sermos, desde então — como rezamos na Salve Regina —, os “degredados filhos de Eva”. Degredo quer dizer exílio: Deus nos fez para participar de sua felicidade, no Paraíso; mas estamos exilados, fora de nossa Pátria verdadeira, apartados da vida de Deus. E se não nos reconciliarmos com Ele pelo Batismo — por meio do qual, concretamente, Jesus restaura em nós a graça que Adão nos havia perdido —, não há que se falar para nós de Céu.
Aqui podemos entender melhor o que Deus tinha em mente ao acautelar Adão e Eva do fruto proibido no Éden. Ele dizia: “Vós morrereis”. Curiosamente, o relato bíblico diz que, depois de provarem do alimento vetado, eles continuaram vivos. Teria Deus mentido? É evidente que não. Satanás que é mentiroso e “homicida desde o princípio” (Jo 8, 44). Acontece que Deus falava aqui, sobretudo, da morte espiritual; era a sua vida divina em nós que cessaria de existir. A morte física entrou no mundo também, é verdade, mas a morte eterna é muito pior do que isso. Se Satanás mata um católico em estado de graça, ele terá perdido essa alma, que vai para o Céu. O que ele quer, portanto, é prolongar ao máximo nossa vida, aqui neste mundo, de tal forma que tenhamos mais chances de pecar e, consequentemente, perder a vida eterna. Esse é o homicídio principal que ele quer praticar.
Uma das principais armas que o demônio tem a seu dispor, neste trabalho de escravizar-nos, matar-nos espiritualmente, é a mentira. E um grande instrumento seu sempre foram as falsas religiões pagãs.
Fala-se muito hoje em dia de diálogo e paz com todas as religiões. Mas é preciso ter em mente que a maior parte das religiões atuais, pelo menos as que conhecemos, beberam muito da cosmovisão cristã, com o que atenuou-se muito a maldade que lhes era inerente. As religiões antigas, porém, anteriores ao cristianismo, estavam todas baseadas nos horrores dos sacrifícios humanos.
Na escola, aprendemos, por exemplo, que os espanhóis vieram à América só para escravizar os indígenas. Até então, segundo se idealiza, estes viviam felizes, como o bom selvagem de Rousseau, numa espécie de paraíso terrestre, completamente livres da corrupção da sociedade. No entanto, a verdade é que, quando Hernán Cortés e seus homens chegaram ao México, antes de se encontrarem com Montezuma, rei dos astecas, foi surpreendente o que eles encontraram: incontáveis cadáveres e pessoas aprisionadas para sacrifícios humanos. A sede de sangue era tamanha que, só na dedicação de seu templo principal, os astecas sacrificaram mais de 80 mil pessoas. Ante tal horror, como não lembrar aqui, com o salmista, que “todos os deuses dos pagãos são demônios” (Sl 95, 5)? Seria acaso falta de “sensibilidade ecumênica” reconhecê-lo? Todas as religiões pagãs estavam fundadas, de fato, nos sacrifícios humanos — e, quando não havia morte explícita, era possível notar vários resquícios dessas práticas na cultura a elas associadas, uma cultura cuja marca distintiva era justamente a descartabilidade do ser humano.
Ora, observemos a realidade brasileira, cuja cultura infelizmente já não é mais cristã: aqui, o aborto já é prática normal e, anualmente, são assassinadas cerca de 45 mil pessoas — dados estatísticos que ouvimos no telejornal como notícias sem importância. Para um outro exemplo: na Rússia, também de cultura pós-cristã, toda mulher conhece uma colega que já tenha abortado — não raro, mais de uma vez.
Então é evidente que vivemos sob o imperativo de uma cultura para a qual o ser humano é descartável, assim como nas culturas antigas. Por exemplo, entre os amonitas — vizinhos dos hebreus — havia o culto ao deus Moloch, que exigia que bebês fossem lançados pelos seus próprios pais dentro de um caldeirão de fogo. O método de crucifixão foi desenvolvido pelos babilônios — vizinhos dos assírios — e tinha como objetivo fazer um condenado morrer da forma mais lenta e dolorosa possível.
Só mais tarde a crucifixão foi adotada pelos romanos, que aperfeiçoaram o método com requintes de crueldade. Aproximadamente cem anos antes de Cristo, esses mesmos romanos aboliram os sacrifícios humanos, mas a sua cultura ficou marcada pelo desprezo à dignidade do homem: basta ver como os gladiadores eram mortos nas arenas só para o contentamento do público. Na Roma Antiga não havia aborto por falta de método, mas a criança rejeitada era exposta, deixada ao léu para morrer. Esses pequenos abandonados só começaram a ser acolhidos quando a fé cristã disseminou-se no Império Romano e surgiram os primeiros orfanatos.
Além disso, na Antiguidade, o exercício do poder era indissociável da política e da religião — com esta se tornando, quase sempre, um instrumento para escravizar as pessoas e submetê-las a um império político. Esse sistema só foi destruído com Nosso Senhor, que disse: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21).
Há quem diga que os missionários portugueses vieram para o Brasil, como os espanhóis foram para o México, só para destruir o paraíso tropical dos nativos. Hoje os índios brasileiros, outrora pagãos, são mais ou menos cristianizados; por isso ficamos escandalizados quando ouvimos dizer que, em determinada tribo, nos dias atuais, uma criança foi enterrada viva [2]. Mas isso era hábito corriqueiro na cultura. Porque somos cristãos, tendemos a achar que as pessoas sempre se opuseram a esse tipo de atrocidade. Mas não. Conforme os relatos históricos, quando os portugueses desembarcaram nas praias do Brasil, as mães indígenas foram até eles dispostas a trocar os seus próprios filhos por quaisquer quinquilharias e bugigangas.
Conta-se que São José de Anchieta foi dar os sacramentos a uma índia que se converteu no leito de morte. Ao perguntar a mulher qual seria o seu último desejo, Anchieta ouviu atônito que a velha índia gostaria de comer uma “sopa de dedinhos de criança” — ela só reprimiu o desejo pois, evangelizada, lembrou-se que tal coisa não agradava a Deus.
É um dentre tantos exemplos do quanto o canibalismo estava enraizado na cultura dos nossos indígenas. Aliás, o primeiro bispo do Brasil, Dom Pero Fernandes Sardinha, foi devorado pelos índios depois de um naufrágio. E quando não era o canibalismo, o desprezo pela vida se expressava em outros costumes bastante reprováveis. Em certa ocasião, quando São José de Anchieta e o Padre Manoel da Nóbrega foram feitos cativos dos índios, estes, ao verem a bondade dos prisioneiros, ofereceram suas próprias filhas para que os padres as usassem sexualmente.
Isso é o paganismo. Essa é a marca da sociedade pagã, que tem a assinatura de Satanás: um mundo cuja ideologia mestra é o completo desprezo pela vida humana. E foi precisamente disso que Deus nos resgatou, a começar por seu chamado a Abraão.
Os sacrifícios humanos, por exemplo, eram prática corriqueira nos reinos mesopotâmicos de onde saiu o nosso pai na fé. Por isso não deve escandalizar-nos a célebre passagem em que o Senhor inspira Abraão ao sacrifício de Isaac (cf. Gn 22): ora, se os povos pagãos entregavam seus filhos à morte por amor aos falsos deuses, por que o patriarca não poderia ter o mesmo desapego em nome do Deus verdadeiro? No fim, porém, o Senhor revela que queria apenas a disposição em sacrificar, e não propriamente o sacrifício; Deus queria ver no coração de Abraão a fé e a obediência que faltaram a Adão e Eva. Pois foi justamente por não crerem em Deus, por terem cedido à mentira de Satanás, que nossos primeiros pais — e com eles toda a humanidade — se viram cativos da cultura homicida de que falamos.
Veja-se como, então, diferentemente do que costumamos pensar, não existe uma terceira via entre o bem e o mal. No fundo, temos sempre de escolher entre servir a Deus ou ao diabo. Fazer a nossa própria vontade não é uma terceira alternativa, neutra e sem compromissos. É Satanás quem se alegra quando nos negamos a fazer a vontade divina! É com sua rebelião que coincide nossa recusa em obedecer. Não nos enganemos: quando decidimos fazer a nossa vontade, afastando-nos de Deus, na ilusão de sermos “livres” e autônomos, estamos entrando nas fileiras do inimigo. Afinal, a primeira criatura a agir conforme a própria vontade, e contra a divina, foi Lúcifer.
Portanto, não há decisão neutra. Deus disse: “Coloco diante de vós dois caminhos: a vida e a morte” (Dt 30, 15).
É claro, temos nossa liberdade; mas não somos livres para determinar as consequências das nossas escolhas. Foi o que aconteceu no jardim do Éden — e é o que acontece cotidianamente conosco. Não podemos escolher, ao mesmo tempo, ingerir veneno e permanecer vivos. Ora, o pecado, qual veneno, também é mortífero. Quando escolhemos pecar, caímos em uma espiral da qual só sairemos por meio de um Redentor.
Como dissemos, Deus iniciou esse processo de resgate ao chamar Abraão, tirando-o daquelas religiões mortíferas que havia ao seu redor e provando-o pela fé.
Quando Deus prometeu um filho a Abraão, ele já era centenário, e sua esposa, Sara, estava na menopausa há muito tempo. Humanamente falando, portanto, não havia possibilidade de uma gravidez. Quando o mensageiro de Deus apareceu ao casal, anunciando que no próximo ano Sara daria à luz, ela riu. Mas com o nascimento de Isaac a promessa foi cumprida.
Deus porém o pediu de volta, em um ato de sacrifício, para ensinar ao nosso pai na fé que nada, nem mesmo um filho, poderia ser colocado em seu lugar. Deus também nos dá seus dons, seus presentes, suas graças; mas nós não podemos colocar essas coisas acima do nosso eterno Benfeitor. Eu, por exemplo, não posso colocar meu sacerdócio acima do amor a Deus. Se fosse colocado em uma encruzilhada, na qual precisasse escolher entre Ele e o meu sacerdócio, não deveria hesitar — como fez Abraão. Pois bem: qual é o nosso Isaac? O que recebemos da Providência que agora tomou o lugar de Deus?
De fato, o pedido do Senhor para que Abraão sacrificasse seu filho parece absurdo. Comentando o episódio, porém, São Paulo diz que nosso patriarca cria que Deus podia ressuscitá-lo dos mortos (cf. Hb 11, 19). A bem da verdade, a vontade divina era que Abraão matasse não Isaac, mas, sim, o ídolo que ele havia feito em seu coração.
Eis a nossa jornada de regresso a Deus, que começa com a fé. O primeiro passo para o ferro transformar-se em fogo — nosso objetivo nessa jornada — é crer. Foi de fato uma grande desgraça nossos primeiros pais, Adão e Eva, terem dado ouvido àquela serpente, Satanás. O remédio para desfazer esse mal, porém, é crermos em Deus: sim, nós somos tolos, maus e impotentes; creiamos nele, portanto, que é bom, sábio e poderoso.